O filme da nossa geração

Ana Veloso
Jornalista, doutoranda em Comunicação, empreendedora social da Ashoka, professora da UNICAP e colaboradora do Centro das Mulheres do Cabo

“Se tens um coração de ferro, bom proveito. O meu, fizeram-no de carne, e sangra todo dia.” (José Saramago)

As imagens emergem na tela da TV. Onde havia homens e mulheres, agora, vejo “zumbis”. São eles/as, os que tiveram a vida roubada pelo crack. Mais um close. Sou tomada por uma realidade não tão distante. Não dá para virar a face. Não estou, aqui, querendo ignorar o sensacionalismo do enquadramento da “cracolândia”, em São Paulo, como um espetáculo televisivo. Também não aceito a justificativa do uso de imagens espetaculares de usuários sucumbindo em praça pública, em várias metrópoles brasileiras, pela mídia, como forma de “atender aos desejos da audiência”.

Uma coisa é certa: não há como negar que essas expressões públicas exibem uma espécie de barbárie que fingimos desconhecer. Os “personagens” das matérias, muitas vezes descontextualizadas e desprovidas de sentido humano, são pessoas que gritam sua dor publicamente. A realidade onde essas “personas” “atuam” faz parte do filme que irá traduzir, no futuro, a nossa geração.

É no interior de centenas de lares, nos lugares onde cenas de horror não podem ser captadas pelas lentes da mídia, que muitos brasileiros/as estão perdendo sua dignidade humana. Os denominados “noiados”, usuários de uma droga devastadora, são seres coisificados que formam um exército de proporções assustadoras em nosso país.

Não podemos, diante da complexidade do assunto, unicamente criminalizar o dependente químico. Justamente ele/ela, que teve sua cidadania extirpada e que, muitas vezes, não vislumbra uma saída viável para recuperá-la. É leviano apontar toda a responsabilidade para os usuários, quase sempre os associando ao tráfico e ao crime organizado. Trata-se de tomar um lado da questão como universal para justificar a inoperância da sociedade em apontar soluções. O consumo não pode ser observado, apenas, como caso de polícia, ou algo de cunho privado, íntimo. Ele afeta toda a nossa sociedade.

Ao tomar conhecimento de um número cada vez maior de pessoas comuns, de todas as classes sociais, que tiveram a existência encurtada pelo uso de narcóticos, fico pensando: qual é o limite da autonomia de um ser que “já se habituou a não ser pessoa”?

O assunto é árido, espinhoso, difícil. É sensato compreender que as políticas públicas precisem ser estruturadas com base em estudos e planejamentos. Elas devem ser discutidas sem paixão para que não tenhamos o mais do mesmo: ações baseadas unicamente em abordagens punitivas e opressoras.

Todavia, no ano das “meias verdades”, o tema está fora da pauta dos debates eleitorais?

Não consegui compreender, ainda, como um país sério pode alardear viver dias de desenvolvimento sem ter uma política consistente, estruturada e corajosa para enfrentar a questão das drogas. No caso dos dependentes químicos (e de todos os desdobramentos que envolvem a questão), a inoperância do Estado pode significar várias sentenças de morte. O tamanho da urgência em enfrentar o fenômeno é diretamente proporcional ao potencial extermínio de milhares de vidas. Quando relegamos a defesa dos direitos humanos para segundo plano, estamos de certo modo, admitindo a persistência da barbárie em nosso cotidiano.

Uma resposta em “O filme da nossa geração

  1. Excelente, Ana. Esse é um tema que não pode ser deixado pra trás sob qualquer circunstância ou conveniência.
    Márcia

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